CIDADES INEXISTENTES: AS VOLUMETRIAS DE SENTIDO DE LARA MATANA
Esta é uma história sem princípio. Como em geral acontece com as boas histórias. Não é possível afirmar onde teria se dado o encontro da artista com a matéria, ou como esta matéria teria se tornado, para a artista, um problema que demanda muitas tentativas de resolução. O tempo de criação não é linear. Já que se trata disso comecemos pelo meio: Lara Matana, reúne uma incrível variedade de tocos de madeira, aparas diversificadas, restolhos pontiagudos, outros arredondados, toda sorte, enfim, de pequenos pedaços de madeira, daqueles abandonados pelos cantos de uma carpintaria qualquer. Como quem se prepara para montar um grande quebra cabeça, a artista, em seu ateliê, distribui em baldes o conjunto dos resíduos que reuniu, conforme a qualidade (compensado, cedrinho, etc.), conforme similaridades formais, ou conforme preparações específicas (lixamento, pintura especial, etc.), cada vez que a mão alcança, no balde, uma dessa aparas se dispõe a percorrer as sinuosidades da matéria madeira, experimentando o volume e suas texturas, ou cada vez que o olho examina suas características visíveis, aprecia as qualidades formais (mas não apenas), este pequeno objeto que a mão alcançou no balde, entre tantos outros, deixa de ser resíduo, apara, restolho de carpintaria, tornando-se peça. Coma a palavra chula ou insossa ou patética que a mão do poeta arranca do balde-vocabulário, para torna-la única, potente. O resíduo regularizado atua então como qualquer outra matéria (pigmento, argila, palavra, som) em iguais condições de engendrar afectos. Esta é a alquimia da criação. Chega a ser comovente assistir a transformação dos tocos de Lara Matana. No caso de sua árvore reconstruída em novos termos ainda que seus princípios sejam um pouco diferente, mas com inegáveis comunhões, a transformação é dramática.
O que Lara Matana constrói com os tocos? Cidades. Quando apreciamos seus objetos de cima, principalmente, experimentamos o sobrevôo de uma paisagem complexa . Uma topografia acidentada, uma volumetria singular. Poderíamos dizer que são cidades ou espaços constituídos por relações de proximidade, que abrigam fluxos, e que compõem heterogeneidades. Mas dois desejos encenam o conflito básico de sua dinâmica: reproduzir, combinar, organizar ou inventar, quebrar, esquizofrenizar. É por isso que alguns dos objetos de Lara Matana, volumetrias cujo sentido é a cidade, desejam a ordem; compõem-se de peças mais delicadas, bem acabadas, peças que querem produzir totalidades harmônicas, agradáveis, confortáveis, cidades jardins, mais ao gosto dos arquitetos. Aqui, quase esquecemos que essas peças eram resíduos. Mas, o segundo desejo rapidamente se manifesta em outras de suas cidades: pouco belas, mas rudes, grosseiras, sem regularidades, desagradáveis muitas vezes, que ameaçam arranhar-nos ao toque. No entanto, é mais propriamente território de multiplicidades, habitado por velocidades mais variáveis, capaz de engendrar situações mais intensas. Nietzsche diria que as primeiras são apolíneas, as últimas dionisíacas. Não se trata, evidentemente, de escolher, de afirmar um e negar outro. Um e outro desejo, ou pulsão artística, são modos de expansão de tudo o que vive. O risco da opção canônica pelo primeiro é, por medo da dor, não mais viver. De outro, para mais viver, ser tragado pela embriaguez e liquefazer-se.