Por Paulo Klein | Crítico de Arte APCA / ABCA / AICA

À FLOR DA MADEIRA, IL MONDO CONSTRUITO DE LARA MATANA
“Eu vo-lo digo: é preciso ter um grande caos dentro de si para dar à luz uma estrela cintilante.”

Lara Donatoni Matana situa-se no universo dos criadores que operam em harmonia com a Natureza, artistas que se espalham pelo mundo em grupos integrados, células comunicantes, individualidades carismáticas que atuam em defesa do planeta. Mais do que uma atitude estética, trata-se de busca por qualidade de vida que, por si só, já envolve suas criações de uma aura especial. Não obstante essa sintonia, a produção artística de Lara desenvolve-se com descartes de madeira, reutilizados de forma sustentável e inteligente, extraindo efeitos sedutores de placas, caibros, toras, tocos e toquinhos, sarrafos, farpas, lascas e lâminas. Assim, ela alcança resultados visuais de grande efeito, que remetem às mandalas, aos caleidoscópios, às rosáceas, prismas e arabescos que explodem de suas obras numa profusão harmoniosa de cores e formas. Às vezes, tiram partido da coloração natural da flora, ora conseguem resultados sedutores nos arranjos geométricos ou composições fractais, ora numa sobriedade elegante, transcendente, que toca profundamente quem as aprecia ou com elas convive.

Não bastasse a odisséia para se atingir os resultados apresentados ao público há ainda a dimensão interior, a energia espiritual de amparo e bondade para com o outro, que permeia os resultados estéticos. A aura de boa-venturança, a sonoridade mântrica, o poema silencioso que nos traz motes de sua convivência com os princípios de Sathya Sai Baba, a busca de equilíbrio dos iogues são componentes em per si. A artista reverencia ainda, sempre que possível, os artistas que – de alguma maneira – admira e com os quais se identifica como Frans Krajcberg, Arthur Lescher e Ascânio MM. Em alguns momentos, ela sintetiza essa relação no discurso que exalta as magias da Natureza, em outros o rigor, a busca dos materiais nobres ou a opção por inovar e seduzir pelo olhar.

Em especial nas obras da série Caleidoscópio, que integram esta mostra, assim como nas que se referem a Rosáceas e Prismas, Lara trabalha com a dinâmica de desenhar com lâminas de madeira, recuperadas para a arte depois de servirem como mostruários para a indústria. Estas unidades, tingidas ou expostas naturalmente, adquirem o status de alfabeto, com o qual ela compõe seus poemas visuais, permeados por uma verve construtivista, que empolga os que se aventuram nas trilhas da visualidade, mas que deverá ser cada vez mais explorada na expansão natural que a artista vem experimentando. São obras que se modificam naturalmente, como se modifica nosso olhar com a alternância dos dias, com a alternância das luzes, num processo de aparente magia evolutiva que envolve as grandes obras de arte. Estamos frente a um luminoso “mondo construito” que se manifesta “à flor da madeira” para trazer nossas emoções “à flor da pele”.


A POÉTICA DA NATUREZA DESNUDA ENTRE ATIVISMO E ARTE NA OBRA DE LARA DONATONI MATANA.


Em determinados momentos, conceituar o que vem a ser uma poética é nos agarrar a opiniões prontas, pelo fato de constantemente perdermos nossas ideias, ou parte delas, devido à incessante estimulação dos sentidos que sofremos. Nesta ótica, precisamos ser “tocados” por algo para começar nossa busca de respostas (ou perguntas), onde nos deparamos com um processo de conhecimento irreversível. Mas isso só nos atravessa e move porque somos incompletos. A incompletude nos coloca numa locomotiva de pensar o instante passado como um fiapo de algo para o instante por vir.

Essa locomotiva “pensante” “ziguizagueia” e nos conduz ao pensar existência, pensar que antes de sermos humanos, somos não humanos. Bactérias que evolutivamente ultrapassaram formas para chegar a estágios avançados e que, de forma constante se auto produz. Assim podemos pensar que, o conceito de Autopoiese de Maturana e Varela trilha na essência humana. Se o homem em si é autopoiético, o que emana desse ser em essência também o é. E pensar que para se autoproduzir é necessário não ter fronteiras peremptoriamente demarcadas é pensar que em si, somos abertos e que somos, antes de humanos, uma forma de obra de arte.

Toda obra de arte é uma grande composição criativa, e o homem nada mais é que uma emaranhado de redes interconectadas, que atravessam-se na sua própria autoprodução e que se conserva; evoluindo e sendo modificado pelos engendramentos e polissemias que se avolumam afetando uns aos outros, com mais de uma possibilidade de compreensão. Não tem como entender o mundo plural da contemporaneidade com seu homem multifacetado sem uma compreensão de arte proporcionalmente descentralizada e pluralizada.

O mundo é o homem transformado ao mesmo tempo que ele se auto transforma e transforma consequentemente o mundo e ai temos um intenso fluxo de possibilidades. O fluxo mantém a cultura em movimento, as pessoas enquanto atores e rede de atores, a historia, costume e tradições em trânsito e atravessamentos constantes. O fluxo remete a uma espécie de continuidade e passagem que desembocam em certos “limites”. Pensadores como Barth na década de 60 contribuíram para imaginarmos os limites como algo através do que se dão os contatos e interações; nos mostra que eles podem ter um impacto na forma e na extensão desses contatos, mas não contêm dentro de suas fronteiras isolamentos naturais.

Se ser humano e o que se emana dele são formas de arte, a arte também ganha conotações ativistas. Arte ativista não significa apenas arte-politica, mas, também, um compromisso de engajamento direto com as forças de produção não mediada pelos mecanismos oficiais de representação. Lógico que isso deriva do projeto poético que o artista se coloca em busca, onde consiste a compilação de variantes fatores internos e externos vivenciados pelo sujeito artista, no caminhar da construção de sua obra.

Artistas partem muitas vezes de uma ideia, um instinto inquietante na feitura de tecer sobre determinada matéria – física ou intelectual | imagética – um ponto de vista; uma opinião, uma paixão, uma vivência. O contato com o cerne lenhoso, poeirento e cheio de nós que a madeira exala, provocou um “fluxo” produtivo no instinto artístico da escultora Lara Donatoni Matana de uma forma tão voraz que inverteu o olhar da mesma para a arte e passou a utiliza-la como vetor de ativismo para a questão ambiental.

Não existe uma forma de mensurar onde a madeira termina e onde a escultora começa. Ambas se fitam, conversam e se encontram desnudas de conceitos e revelando a força que o homem possui ao encontrar o equilíbrio com a natureza ao mesmo tempo em que desta resignifica o olhar sob as artes. A interconectividade de alma, entre um devir ativismo em um ambiente que pujantemente grita, enquanto desconsertadamente, esquecemos de onde viemos e para onde vamos. Se antes de tudo somos não humanos, se somos uma forma de obra de arte , somos antes disso natureza. E a ela, devemos respeito, cuidado e preservação.

A obra construída por Lara, nesses mais de 13 anos de produção artística dialogando com a madeira, mostra que, nem mesmo no fim, um final absoluto existe. De restos, retalhos, dejetos um novo recomeço faz se possível. O impensável prova que a relatividade das ações, sejam sociais, artísticas, politicas, são tangíveis. Basta passar a usar, como disse Appadurai, a imaginação livre em nossa mente. Nossa arma mais poderosa. Nossa alma mais voraz. Nossa essência mais intensa.

Por Caroline Araújo | Publicitária e Crítica de Arte


Por Aline Figueiredo | Curadora e Crítica de Arte

Lara Donatoni Matana nasceu em Andradina\SP, em 1969 e reside em Cuiabá desde 1983. A partir de 2001, começa suas primeiras pesquisas criativas a utilizar sobras de madeira e hoje consegue apresentar interesse em sua diversificada produção.

Mato Grosso, este grande Estado madeireiro, ganha mais uma artista com sensibilidade para aproveitar o resíduo industrial dessa matéria tão nobre, cujo destino, em grande parte, infelizmente ainda vai para o lixo ou a fornalha. Há mais de 15 anos, mantém contato com o Distrito Industrial, situado na periferia da grande Cuiabá, que, através da Associação dos Industriários, tem direcionado esforços no sentido de estimular artistas. Inclusive, no final do ano passado, lá visitei a bela instalação de Roberto de Almeida, nosso escultor animalista da madeira. Esposa de um dos industriários, Lara Donatoni Matana utiliza-se da oficina coletiva instalada em galpão do Distrito. Para peças maiores, pois, em casa tem própria marcenaria para melhor trabalhar a detalhação.

Vale considerar que o olhar de Lara não está alheio aos entulhos. Restos de caibros, ripas e ripinhas, lâminas, tocos e toquinhos, largados ao tempo, para ela têm serventia. Daí a diversidade da sua produção, pois são os pedaços da matéria, neste caso, da madeira, sejam grandes, grossos, largos ou finos, quem conduzem o gesto criativo. É a peça matérica, pois, com suas especificidades, quem define a estrutura expressiva do suporte, seja ele para o chão, parede, dependurados ou a transitar pelos móveis. Todos com interessante caráter sensórico. Aliás, os objetos dependurados ou acoplados em mesas de sala como vi, que se assemelham às formas de bichos, tipo cobras ou minhocas, possuem ótimos movimentos óticos e lúdicos. Em tempo: acredito que no campo lúdico desses trabalhos, leves e maleáveis, esteja a melhor identificação com o designer, que em Lara está a se manifestar.

Trabalha também com as lâminas, esfaqueadas e tingidas provenientes dos mostruários industriais, aqueles já desatualizados, que ela vem a ganhar das firmas locais. Com esse tipo de material, menor e de fina espessura, a artista desenvolve composiçoes de cunho geométrico. Aí, as formas variam, entre alusões a pipas ou pandorgas, as formas redondas lembram mandalas ou as retangulares a sugerir trançados da iconografia indígena. Essas lâminas, que já lhes vem coloridas de vermelho, preto, bege ou marrom, são muito bem por ela aproveitadas no sentido de exercitar o lado construtivo da sua invenção. Lado esse que, acredito, tenha a artista um grande campo a explorar.

Mais recentemente, vem trabalhando com peças maciças grandes e pesadas, e mais apropriadas para o chão. Olha os troncos por longo tempo, até ganhar-lhes a intimidade expressiva que vai sugerir e induzir o que neles interferir e recriar. Ora conserva os sulcos que considera mais expressivos, abre frestas e lhes introduz pequenos pedaços geométricos de madeira; ora lhes acrescenta grandes pedaços, bem alisados pelos tornos, a dialogar, assim, entre o rústico e a intervenção da máquina. Agora em abril, Lara Donatoni Matana foi convidada a participar da II Feira Brasil Certificado, em São Paulo, a reunir artistas de todo o País que utilizam materiais recicláveis e politicamente corretos. Nessa mostra, a artista exibirá exemplos das três vertentes mais expressivas do seu trabalho, ou sejam, as peças maciças de chão, as lâminas em composições construtivas e os objetos maleáveis e cinéticos.


CIDADES INEXISTENTES: AS VOLUMETRIAS DE SENTIDO DE LARA MATANA

Esta é uma história sem princípio. Como em geral acontece com as boas histórias. Não é possível afirmar onde teria se dado o encontro da artista com a matéria, ou como esta matéria teria se tornado, para a artista, um problema que demanda muitas tentativas de resolução. O tempo de criação não é linear. Já que se trata disso comecemos pelo meio: Lara Matana, reúne uma incrível variedade de tocos de madeira, aparas diversificadas, restolhos pontiagudos, outros arredondados, toda sorte, enfim, de pequenos pedaços de madeira, daqueles abandonados pelos cantos de uma carpintaria qualquer. Como quem se prepara para montar um grande quebra cabeça, a artista, em seu ateliê, distribui em baldes o conjunto dos resíduos que reuniu, conforme a qualidade (compensado, cedrinho, etc.), conforme similaridades formais, ou conforme preparações específicas (lixamento, pintura especial, etc.), cada vez que a mão alcança, no balde, uma dessa aparas se dispõe a percorrer as sinuosidades da matéria madeira, experimentando o volume e suas texturas, ou cada vez que o olho examina suas características visíveis, aprecia as qualidades formais (mas não apenas), este pequeno objeto que a mão alcançou no balde, entre tantos outros, deixa de ser resíduo, apara, restolho de carpintaria, tornando-se peça. Coma a palavra chula ou insossa ou patética que a mão do poeta arranca do balde-vocabulário, para torna-la única, potente. O resíduo regularizado atua então como qualquer outra matéria (pigmento, argila, palavra, som) em iguais condições de engendrar afectos. Esta é a alquimia da criação. Chega a ser comovente assistir a transformação dos tocos de Lara Matana. No caso de sua árvore reconstruída em novos termos ainda que seus princípios sejam um pouco diferente, mas com inegáveis comunhões, a transformação é dramática.

O que Lara Matana constrói com os tocos? Cidades. Quando apreciamos seus objetos de cima, principalmente, experimentamos o sobrevôo de uma paisagem complexa . Uma topografia acidentada, uma volumetria singular. Poderíamos dizer que são cidades ou espaços constituídos por relações de proximidade, que abrigam fluxos, e que compõem heterogeneidades. Mas dois desejos encenam o conflito básico de sua dinâmica: reproduzir, combinar, organizar ou inventar, quebrar, esquizofrenizar. É por isso que alguns dos objetos de Lara Matana, volumetrias cujo sentido é a cidade, desejam a ordem; compõem-se de peças mais delicadas, bem acabadas, peças que querem produzir totalidades harmônicas, agradáveis, confortáveis, cidades jardins, mais ao gosto dos arquitetos. Aqui, quase esquecemos que essas peças eram resíduos. Mas, o segundo desejo rapidamente se manifesta em outras de suas cidades: pouco belas, mas rudes, grosseiras, sem regularidades, desagradáveis muitas vezes, que ameaçam arranhar-nos ao toque. No entanto, é mais propriamente território de multiplicidades, habitado por velocidades mais variáveis, capaz de engendrar situações mais intensas. Nietzsche diria que as primeiras são apolíneas, as últimas dionisíacas. Não se trata, evidentemente, de escolher, de afirmar um e negar outro. Um e outro desejo, ou pulsão artística, são modos de expansão de tudo o que vive. O risco da opção canônica pelo primeiro é, por medo da dor, não mais viver. De outro, para mais viver, ser tragado pela embriaguez e liquefazer-se.

Por Ludmila Brandão | Arquiteta e Historiadora